A
ideia de que um livro pode mudar a vida de alguém é altamente controversa. Há
quem acredite; há quem discorde. O fato é que, caso a leitura de uma obra possa
mesmo ser capaz de mudar a vida do leitor, isso depende em grande medida do
conjunto de referências culturais e experiências vitais experimentadas por
aquele que lê. Mas iremos falar um pouco, sobre os dez livros considerados
"transformadores".
A
Condição Humana, de Hannah Arendt.
No
seu livro mais famoso, “Origens do Totalitarismo”, Hannah Arendt buscou
contextualizar historicamente o que chamou de “tentativa totalitária da
conquista global e do domínio total” no século 20. Sua análise atravessa
conceitos como antissemitismo, imperialismo e totalitarismo, para concluir que
a dignidade humana só pode ser garantida por meio de novos princípios políticos
— aquilo que designou de “um novo começo”.
Para
a exposição dos fundamentos filosóficos desse “novo começo”, Arendt escreveu “A
Condição Humana”. Trata-se de obra bem menos conhecida do público em geral, não
obstante seja talvez o seu trabalho de maior fôlego filosófico. Nesse livro, a
pensadora alemã defende o conceito de “vita activa”, entrelaçando o que
considera as três atividades humanas fundamentais (labor, trabalho e ação) com
as condições mais gerais da existência humana (nascimento e a morte, a
natalidade e a mortalidade). O maior mérito intelectual da obra é, todavia,
discernir com notável lucidez os conceitos de esfera pública e esfera privada.
Eis um tema de suma relevância para a vida do leitor, já que viver é um ato
político — produto de uma decisão política, ainda que inconsciente. Assim, ter
a consciência de que a ação no espaço público traz implicações e
responsabilidades distintas daquelas empreendidas no espaço privado é
fundamental para o desenvolvimento de uma nova visão da política e da vida como
bem supremo da condição humana.
História
Universal da Música, de Roland de Candé.
De
todas as formas de manifestação artística, a música é indubitavelmente a mais
popular. Enquanto, por exemplo, a leitura de um livro exige um ritual mínimo de
preparação (o ambiente silencioso é essencial no meu caso), para ouvir uma peça
musical não é preciso sequer a intenção. Não são poucos os casos de ouvintes
que descobrem a obra de um artista por acaso, ouvindo-a no rádio, como trilha
sonora de filme, ou no som do carro do colega de trabalho que lhe deu uma
carona. Isso não é ruim, é claro, pois a música é fonte de felicidade — e cabe
à arte nos tornar humanos. O problema é que, diante dessa popularidade, a compreensão
da música, enquanto fazer artístico, começa a desaparecer. Para piorar, a
indústria fonográfica trabalha na lógica da picaretagem, fabricando “ídolos”
que têm menos sensibilidade musical que um sapo ou uma cigarra.
“História
Universal da Música” é uma leitura obrigatória para todo aquele que deseje
passar da condição de reles “tocador de instrumento” à condição de músico, ou
do estágio de “escutador ocasional” ao do ouvinte qualificado, apto a apreciar
a arte musical em um nível profundo.
Truffaut/Hitchcok:
Entrevistas.
O
livro pode ser capaz de “mudar” a vida do leitor por uma razão muito simples:
ele revela que o cinema requer, por parte do artista, um domínio do seu ofício
que é tão técnico e cerebral quanto o do compositor de uma sinfonia. As entrevistas
denotam que o fazer cinematográfico, entendido enquanto proposta de arte,
representa tarefa de difícil domínio, que ultrapassa em vastos o mero
ajuntamento de imagens ou a montagem de efeitos especiais. É um livro que
mostra ainda que, por trás das câmeras, existem intelectuais formidáveis, donos
de um cabedal amplo de referências culturais que, pensadas e refletidas à
exaustão, sustentam uma arte de difícil condução, a evitar que o diretor perca
o controle do seu filme e fracasse em sua proposta.
Walden,
de H. D. Thoreau.
“Walden”
é um livro que se pode desvendar pelo subtítulo que o autor lhe deu: “A vida
nos bosques”. Registrar as experiências de uma vida em comunhão com a natureza,
como um bicho do mato, era a proposta revolucionária do pensador estadunidense
Henry David Thoreau quando se mudou para uma pequena cabana, que ele próprio
construiu, próxima ao lago Walden. Ali viveria mais de dois anos isolado, de
maneira a expressar sua crítica à sociedade do século 19, marcada pelo
desenvolvimento industrial e o crescimento da vida urbana. “Walden”, que hoje é
considerado obra clássica do pensamento transcendental, é no fundo o testemunho
de um misantropo radical, o testamento de um homem solitário, dotado de um
intelecto superior e incompreendido. Thoreau, considerado um lunático pelos
seus contemporâneos, alguém que quase ninguém levava a sério, foi o intelectual
visionário que conseguiu perceber, com pelo menos um século de antecedência, a
importância da preservação ambiental, antitética ao consumismo.
Oblómov,
de Ivan Gontcharov.
Diferentemente
de Gregor Samsa, que desperta metamorfoseado num inseto na conhecida novela de
Franz Kafka, Iliá Ilitch Oblómov acorda todos os dias, pela manhã, sem nenhuma
alteração. Ele passa o dia de roupão, deitado na cama do seu quarto ou sentado
no sofá. Apesar de jovem (ele tem apenas 32 anos) e de aspecto simpático,
Oblómov é descrito como alguém de rosto privado de qualquer ideia definida e
sem nenhum traço de concentração. Sua rotina é sua indolência, que ele crava em
todos os planos que arquiteta. É um homem de projetos que nunca leva a cabo,
derrotado diariamente pela sua preguiça invencível.
Eis
a síntese do romance escrito pelo funcionário público Ivan Gontcharóv,
contemporâneo menos conhecido da geração de Gógol. “Oblómov” é uma caricatura
divertidíssima da aristocracia feudal russa, mas cujo exemplo se encaixa como
uma luva aos “reis e rainhas do camarote” modernos, que adoram exibir a sua
riqueza em capas de revista e programas de TV, em que pese levarem uma vida intelectualmente
parasitária e, o mais das vezes, completamente fútil.
A Morte
de Ivan Ilicht, de Liev Tolstói.
Na
novela de Tolstói, o moribundo Ivan Ilitch, antevendo a morte, reflete
profundamente sobre sua vida. A angústia leva-o a perceber o quão infeliz foi
sua trajetória, marcada pela obsessão com as aparências, com a busca incessante
de cargos de prestígio, em jogos de interesse e poder que não serviam senão
para alimentar seu ego inflado de juiz austero e bem sucedido. Perto do fim,
sem chance de convalescença, o leito de morte leva-o a perceber que todo seu
empenho havia sido em vão, que tudo aquilo pelo que ele lutara (uma vida de
aparências, de prestígio social invejável, do temor reverencial dado ao juiz
que desempenha rigidamente seu papel de “boca da lei”) o havia abandonado.
Ilitch se vê sozinho diante da morte, inseguro até mesmo quanto à sinceridade
do amor de sua esposa e filhos.
“A
Morte de Ivan Ilitch” é uma novela curta, que em poucas páginas põe o “dedo na
ferida” dos homens que fazem da carreira no serviço público um trampolim para a
satisfação egoica, dispostos a tudo pelo poder. É uma história pungente e
genial. Mas, acima de tudo, é um relato assustador, sobretudo para quem sabe
que a cúpula do serviço público brasileiro, em qualquer dos seus Poderes
(Executivo, Legislativo e Judiciário), é pródiga em exemplos de “Ivan Ilitch” —
infelizmente sem o mesmo escrúpulo.
Demian,
de Herman Hesse.
No
livro, o leitor acompanha a trajetória do garoto Emil Sinclair, que narra como
a amizade com um jovem misterioso (Max Demian) influenciou-o decisivamente em
suas reflexões libertárias sobre a religião, a moral, a sociedade, o Estado, o
amor. É um romance de caráter profundamente filosófico. O capítulo em que Sinclair
fala sobre como o “culto a Beatrice” (a paixão platônica do protagonista)
ajudou-o a enfrentar a solidão possui algumas das passagens mais sensíveis já
escritas em toda a história da literatura mundial.
“Demian”
é um daqueles livros que todos deveriam ler antes de morrer, em face de seu
potencial transformador da alma humana. Um livro indispensável, que deve ser
lido ao som da “Passacaglia em Ré Menor”, de Dietrich Buxtehude, porque “quem
quiser nascer tem que destruir um mundo”.
Ser e
Tempo, de Martin Heidegger.
Publicado
em 1927, “Ser e Tempo” representa o projeto ousado de uma das mentes mais
prodigiosas que a humanidade já conheceu. Nessa obra (inacabada, por sinal), o
filósofo alemão Martin Heidegger propõe-se a discutir o problema do ser no
mundo a partir do método fenomenológico de Edmund Husserl. Como o homem é o ser
que se apresenta imediatamente à consciência, desprovido das pressuposições da
metafísica, Heidegger investigará o ser por meio da existência humana (o ser
do, no e com o mundo). Depurando-a, seu objetivo é estabelecer a medida da
existencialidade do indivíduo, no que avultam os conceitos de existência
inautêntica e existência autêntica — esta última nucleada em torno de sua noção
de angústia.
Definitivamente,
“Ser e Tempo” não é uma leitura fácil. Só a sinopse da obra já demonstra que o
leitor precisa dispor dum arcabouço teórico-filosófico mínimo, a fim de
contextualizar o problema sobre o qual o filósofo se debruça. A linguagem
heideggeriana, oriunda da ontologia, tampouco é simples. Pelo contrário, os
termos que emprega são extremamente complexos — alguns dos quais
verdadeiramente intraduzíveis, motivo pelo qual a compreensão profunda dessa
obra requer do leitor um mínimo de conhecimento a respeito da liberdade
sintática proporcionada pela língua alemã.
Crítica
da Razão Cínica, de Peter Sloterdijk.
Sloterdijk,
tornou-se um fenômeno de vendas na Alemanha quando sua “Crítica da Razão
Cínica” foi publicada em 1983. O livro, cujo título de per si já denuncia a
inspiração na “Crítica da Razão Pura” de Kant, é polemista do início ao fim. Já
no prefácio, o filósofo alemão anuncia: “Há um século a filosofia está
morrendo”. Mas reduzir essa obra magnânima ao seu caráter polêmico é franca
injustiça (polemizar por polemizar é a coisa mais fácil do mundo). Sloterdijk
é, na verdade, um pensador contundente, que tem o mérito de discutir nessa obra
capital do pensamento filosófico contemporâneo um dos temas mais caros da
sociedade capitalista em que vivemos: a indiferença. Em dado momento, o filósofo
reflete: “Na indiferença em relação a todos os problemas reside o derradeiro
pressentimento de como seria estar à altura deles. Como tudo se tornou
problemático, tudo se mostra por toda a parte como indiferente. É preciso
seguir esse rastro. Ele conduz para onde se pode falar de cinismo e de ‘razão
cínica’”.
Advirto
o leitor para que não se assuste com o tamanho do livro. Sloterdijk não sofre
do mau vezo de certos filósofos, que adoram escrever numa linguagem cifrada,
valendo-se duma prosa ininteligível (algumas vezes isso até se justifica pela
dimensão técnica da obra, mas, na maioria dos casos, é puro pedantismo de quem
se serve da Filosofia como pretexto para disfarçar o fato de que escreve mal).
Assim, a leitura das mais de 700 páginas da “Crítica da Razão Cínica” é
experiência das mais agradáveis.
Cenas
da Vida Amazônica, de José Veríssimo.
Há
algum tempo uma grande editora do País convidou escritores brasileiros para que
fizessem uma espécie de “residência” em algumas cidades e, a partir dessa
experiência, produzissem ficção. Naturalmente, as cidades escolhidas foram
lugares como Praga, Buenos Aires, Sidney, Dublin, etc. O resultado foram livros
— alguns bons, outros ruins — que retrataram o amor na perspectiva
multicultural da classe média que viaja pelo mundo. O amor que é “chique”.
Penso
que bem mais interessante teria sido — inclusive do ponto de vista do desafio
da criação literária — se esses mesmos escritores tivessem sido convidados a
fazer sua “residência” em cidades do interior mais remoto do Brasil. Que
histórias de amor se escondem nos rincões deste país imenso e maravilhoso que é
o Brasil? Com que peculiaridades o amor se apresenta nas cidades da Amazônia,
do Pantanal, do Cerrado?
Apesar
disso, faço gosto em exercer o papel de “advogado do diabo” e recomendar ao
leitor o conjunto de contos apresentados em “Cenas da Vida Amazônica”, de José
Veríssimo. O escritor, que nasceu em Óbidos, interior do Pará, foi um dos
principais intelectuais do seu tempo, desenvolvendo intensa atividade no campo
das letras, ora como crítico literário, ora como ensaísta, ora como
ficcionista, ora como pioneiro historiador da Literatura brasileira.
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